segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

CONTOS



SEM TÍTULO (5)

Faz uns quinze dias que eu quase dei uma peixeirada num carteiro. Como se não bastasse os vira-latas grandes no calcanhar dele. Mas o safado estava mesmo merecendo um susto. Pegou a mania de jogar todas as cartas da “vila” na minha casa, a primeira da fila na pequena rua (dez casas conjugadas). Já tive dois bate-bocas feios com ele. É bom ele não esquecer que eu tenho 40 por cento de sangue angico dentro de mim.




MAIS UMA IRA DIVINA.

A principal acusação contra os templários era sodomia, embora também fossem acusados de “voyeurismo carnívoro”.
E bruxaria, obviamente.
Heresia era apenas um factóide repetido para os espíritos superficiais e sonolentos.
Arianistas e pelagianos eram eliminados sem clemência. Inclusive cátaros.
As tetas inchadas da indústria da seca e da filantropia bombada que não paga imposto??




MALDIÇÃO DO PAJÉ.

Cunhão Bêbo era um bravo guerreiro tamoio, mas exagerava na frequência e na dosagem do uso de cauim. Era um pinguço, muito provavelmente.
Mas o pior foi mesmo quando ele declarou guerra aos generais lusos e celtas. Aí o bicho pegou mesmo.
Caravanas armadas do rei Viriato desgarregavam canhões e arcabuzes na titela do bravo guerreiro tupinambá. E bacamartes também. Além de grandes punhais bem amolados. (pequenas espadas fuderosas.)
Não houve outro jeito senão correr e se embrenhar nos cafundós do Maranhão.
Quer dizer: quem conseguiu correr, escapou. (de novo. Mais uma vez.)
Quem não conseguiu, lascou-se, arrombou-se.
Virou ensopado de patinho, com feijão preto.
Foi para o mundo das estrelas com o bucho cheio de chumbo, ou ferro.
Mas não sem antes amaldiçoar o padre Anchieta e a cidade de Ubatuba.




A MORTE ANDA DE TÁXI OU DE ÚBER.
(deixai fazer. Deixai passar.)

Fui empurrado para o meio da briga sanguinária entre os taxistas e os motoristas de Úber. Sem que eu tenha qualquer ligação com qualquer um dos dois lados.
Foi mais um acidente azarado na minha vida.
Eu havia pegado um táxi pra fazer uma corrida,
do Cais de Santa Rita até a Praça da Várzea.
Mas, na Praça do Derby, o motorista cismou que eu era um dos envolvidos no planejamento de uma manifestação de apoio ao Úber, que estava ocorrendo naquele dia.
Então ele passou a me xingar dentro do táxi, entrando num clima de coação e ameaça.
E eu me vi na inevitabilidade de lhe mostrar o cabo de uma peixeira.
Foi uma confusão danada. Ele parou o táxi na calçada de um supermercado, e ligou pra polícia, que chegou rápido.
Me identifiquei e expliquei a situação.
Como vocês sabem, as armas brancas estão liberadas no Brasil. Portanto eu não estava com um porte ilegal de arma. Nem ele podia me acusar de tentativa de homicídio, porque eu estava numa postura defensiva, na verdade.
E a abertura de mais um “bê-ó” iria levar a nada. Seria apenas uma mera formalidade.
Os policiais então mandaram os dois valentões de volta pra casa. Mas antes cada um teve que dar 50 reais a cada policial (eram três).
E a guerrinha furibunda entre os táxis e os “úberes” continuou, e piorou, até que aconteceram duas mortes: uma de cada lado.
Mas dessa vez não teve “pítiza”.




SÓ FALTAVA ESSA.

E agora vem me encher o saco
um traficante de uísque falso
e cigarro paraguaio.
Era só o que faltava.
No meio de uma crise dessas !!!
E ele me cerca. Insiste.
Oferece litro de “Cavalo Branco”                  
a trinta reais.
Onde já se viu??
Tá pensando que eu sou loke, bicho?? Sou malandro véio.” – pensei, mas não falei.
Arranjei uma desculpa qualquer,
e dispensei, driblei.
VAZEI.






JURURU.

Ninguém está mais aperriado do que eu
nesta nossa republiqueta
de bananas no cu.
Tou à beira de um surto.
Uma doidice terrível e macabra.
Uma repentina e irresistível vontade
de comer gabiru na grelha.
De comer tripa de mascates abastados,
como os caetés fizeram
lá em Barra de Santa Ana.





CAVEIRÃO.

Eis o meio campo do Clube de Futebol Papacaça em 1975:
Zezinho Macaxeira, Todo Troncho, João do Bofe e Alma Sebosa.
O esquema tático era sempre o mesmo:
um 4-4-2. Clássico. Tradicional. Sem líbero.
Mas funcionava.
Batia no Belo Jardim, no Sete de Garanhuns, e na AGA e no Serra Talhada.
Dentro ou fora de casa.
É pra se arrombar.
Sai de perto.




ZUZINHA BORDEL & E AS CATITAS.

Zuzinha nunca foi muito bom do juízo.
Foi palhaço nos primórdios da adolescência, e arrastava cem maloqueiros através de distritos e vilas, deixando o coração das “avós-coruja”
a mil: tremendo e esquentando em médias ponderadas.
Outras vezes era o Cão em formato de gente.
A Cabra Cabriola Balcânica, explodindo guetos e sub-gêneros.
Mas agora ele exagerou. Realmente.
Inventou de vender brigadeiros de haxixe em pleno centro do agreste setentrional.
Tou falando sério. (é muito sangue nesse carma coletivo e individual “ao mesmo tempo”).
Então ele me encontra não sei como, “derrepente”, sem querer querendo, na
Ponte Duarte Coelho, em direção ao Cais de Santa Rita.
Que homem feio, meu Deus.” - pensei.
E agora entrou numas de fumar haxixe todo dia, dez vezes por dia, em narguilés estrambóticos que ele mesmo fabrica. E ele, sem querer, muitas vezes parece apenas um matuto aloprado, com aquelas camisas de algodão no estilo “junino psicodélico”. (um casca-grossa agrestino, mas diferenciado: ele, Zuzinha.)
E então o velho Zu, do alto de suas elucubrações macabras, à luz da Cabala Bípede, elabora suas armações específicas, fuderosíssimas.
Atenção, meu povo, muita atenção:
não confundam “culatra de canhão” e “conhaque de alcatrão”. Pois o velho Zu é da Geração 68 Paranambuque. Uma antiquíssima mistura da Bixiga Lixa com a Perna Cabiluda.
(a cutia começando a assubiar.)
Mas ele perdeu a guerra contra as catitas, e entrou num período de decadência estapafúrdia.
Noutro dia fui visitá-lo na favela de Roda de Fogo, onde ele mantém atualmente um barraco fudido, e exerce sua decadência “opiácea” diariamente, com incontáveis jagunços sertanejos no calcanhar dele. Rondando ao redor.
Mas ele agora preocupa-se apenas em cheirar coca, e comer confeitos de haxixe, antes que os novos capitães-do-mato descubram sua nova maloca, e acabem com as suas orgias psicodélicas nos distritos e vilas do sertão.
Uma vez ou outra, ele aparece na minha casa, aqui na Iputinga, parecendo uma alma penada da Década de Vinte. Todo esfarrapado e com escuras olheiras horríveis ao redor dos olhos.
Um “hipster” dos subúrbios de Arapiraca, procurando jazz com espíritos-de-porco dos inferninhos do Recife Antigo, das hordas do novo cangaço, atropelando desavisados e voadores.
Então chega junto de mim, todo desconfiado,
de soslaio, nervosão, e diz: “mermão, tá tudo cinzento, tou fudido, sob fogo triplo. E cinco anos de seca. Tou completamente arrombado.”

Se ele fosse ostrogodo ou saxônico, diria, sorumbático: “man, I’m beat.”



ei! psiu!
u carro du ôvo istá passando agora na sua rua.
tem batata doce também.
tudo a preço baixo.
são trinta ôvo por cinco real.
um quilo de batata é dois real.
venha agora.
não perca essa chance.
venha logo, antes que acabe.
ei! psiu!
u carro du ôvo istá passando agora na sua rua...




Aconteceu também comigo uma história envolvendo um cachorro-do-mato, um “guará”.
Eu tinha 14 anos e estava roubando caju e manga no sítio de Bastião Mangangá, quando o bicho apareceu. Era um macho enorme que estava disputando uma fêmea no cio com outros machos. Apareceu de repente não sei de onde... e partiu pra cima de mim, babando de raiva. Eu segurava, com a mão direita, uma vara grande que tinha usado pra derrubar cajus e mangas. Estava também com uma sacola de plástico cheia de frutas, na mão esquerda.
Catuquei o focinho do bicho raivoso com a ponta da vara, mas ele movimentava-se com uma ligeireza fora do comum, e me arrodiava ligeiro. Num segundo, já estava atrás de mim. Eu me virava ligeiro também, e continuava catucando a venta dele com a ponta da vara. Mas... a um certa altura, desisti de enfrentá-lo, soltei a vara e a sacola... e saí em desabalada carreira. Ele me perseguiu até uma pequena cancela que havia no final da estrada, onde começava uma ladeira. Saltei a cancela, mas me desequilibrei no ar e caí embolando na ladeira. Quando me reequilibrei, olhei pra trás e vi que ele estava parado na cancela. Parecia rir, com um risinho cínico no canto da boca, o pequeno demônio.


  

Quando Morgana, a fada celta, foi expulsa da Bretanha pelo seu meio-irmão Artur, o primeiro rei da Bretanha unificada, após a vitória sobre os saxões em 500 DC na Batalha do Monte Badon, uma horrenda mácula cármica familiar já estava instalada no coração dos cromossomos desta nova família real. Algo semelhante aconteceu com a descendência do rei Davi, após a fodança deste com Betsabá, incluindo a tramóia para a morte do general Urias, o heteu, marido de Betsabá, um côrno eliminado no campo de batalha contra os filisteus.
Antes dos saxões chegarem à ilha britânica, Artur engravidou Morgana, sua meia-irmã, num ritual de fertilidade druida, onde todos atuavam mascarados. Portanto Artur não sabia que havia engravidado a “irmã”, que posteriormente foi expulsa da Bretanha por ser sacerdotisa druida, uma “bruxa”, já que este seu meio-irmão havia se convertido ao cristianismo pelagiano, que posteriormente seria considerado uma heresia pelo catolicismo emergente que se tornaria hegemônico no reino Bretão.
O filho de Morgana com Artur chamava-se Mordred, e ao tornar-se um jovem adulto abriu uma guerra civil contra o pai. Numa batalha, os dois mataram-se mutuamente. Morreram os dois. Antes disso, o Lancelot, um general da Távola Redonda, já havia corneado o Artur com a Guinevere, a rainha.
Evidentemente, esta é uma história de fodanças e cornanças desenfreadas e irresponsáveis. Pra vocês verem que a depravação não começou nem se aprofundou apenas no Brasil, mas é antiga e generalizada. Em todos os lugares, “tudo parece uma igreja, mas por dentro é um bordel”.







KOAN DO ASSOPRADOR DE MURIÇOCAS,
CONHECIDO TAMBÉM COMO ZEN-BUNDÃO

Ele não mata nenhum bicho.
Nem mosquito. Nem barata.
Nem mosca. Nada.
Quando as muriçocas aproximam-se,
ele as espanta com as mãos e
assopra. Se alguma delas
consegue pousar no seu corpo,
ele deixa, e pensa:
"Coitada, ela está precisando de sangue."
OH, quanta SANTIDADE,
quanta ILUMINAÇÃO.

*******************************



TRÊS CONEXÕES ESTAPAFÚRDIAS

A GUERRA DE PEIDOS

Nunca ganhei uma guerra de peidos contra o meu primo Dezinho Catôta (ele era o campeão dessas disputas, o medalha de ouro, na infância e puberdade). Naquela época, ele e outra prima minha (irmã dele) moraram lá em casa durante uns três anos. Depois eles foram morar em Arapiraca (AL).
Eu usava o artifício de, na noite anterior, deixar fora da geladeira uma porção de batata doce e feijão mulatinho (cozinhado com charque velha). Ao meio-dia, almoçava esse “coquetel” medonho, semi-azedo, e esperava a noite chegar. A “guerra” ficava acertada para começar às oito da noite. A gente entrava no quarto (onde dormíamos num beliche) e fechávamos as portas. Cada um soltava um peido, e esperava pela reação do outro primo. Este então, após passar o fedor, soltava o seu. E assim por diante, até que um dos dois primos avisasse que não estava agüentando, e pedisse para sair do quarto.
Como eu disse, nunca ganhei uma guerra de peidos contra o meu primo Dezinho. Havia algo de horrivelmente podre no intestino dele. E ele nem precisava comer o “coquetel” medonho. Bicho danado!!!

****
ACIDENTE NA RODOVIA (narrado por Dezinho adulto)

Tinha uns índio fazendo pedajo numa BR do Maranhão. Aí chegou um motoquêro e num quis pagá. E os índio tacaro bala nele. Mais o motoquêro era delegado e tava armado, e tacou bala nus índio também. Foi um tiroteio arretado. Ficaro baliado o delegado e três índio. Ninguém morreu. E os índio que não fôro baliado corrêro pra dento du mato. Depois chegou a pulícia, e levaro os firido pru hospital. Até agora num teve depoimento de ninguém.
****
BATE-PAPO COM DEZINHO (jovem)

EU: Ela era mesmo gostosa?
ELE: Era uma bicha bôa arretada.
EU: Mas por que você não conseguiu comê-la?
ELE: Ela só dava pra burguês, general, artista famoso.
EU: Você é um conquistador fraco.
ELE: E tu é um côrno fulêro.
EU: Pensei apenas em tentar entender o problema antropológico.
ELE: Antropológico de cu é rôla.

***********************************


ABELHA PINGUÇA

Existe um tipo de abelha Arapuá que gosta de álcool. É um tipo pequeno e escuro, meio azulado, que tem a mania de enrolar-se em cabelos. Outro dia eu tava “tomando uma” com uma turma lá da Várzea do Capibaribe, e chegaram algumas. Elas gostam de diversificar. Experimentaram a cerveja, o conhaque, o vinho, a vodka. E começaram a ficar “bebonas”, aos tombos. (Essa história de misturar bebidas não pega bem; mas elas não sabem disso). E começaram a passar mal. Tremiam e desmaiavam na mesa, em coma alcoólico. Caíam dentro dos copos, em “flecheiros” suicidas. Petiscavam restos (será que elas gostam de carniça? as formigas eu sei que gostam). E então chegaram muitas outras (acho que alguma delas foi lá no “vespeiro” avisar as outras). Algumas voavam meio tontas, em acrobacias caóticas, e pousavam no corpo de todo mundo. Enrolavam-se nos cabelos dos braços e nas cabeças. Mijavam, cagavam. Perdi a paciência e comecei a matá-las (paciência tem limites): e eu também já tava meio “quente”. Mas elas apareciam em número cada vez maior, e estavam cada vez mais cínicas, inconvenientes, belicosas.
Desistimos. E decidimos sair dali, cheios de “ódio”. São umas biriteiras incorrigíveis e descontroladas, essas "vespinhas" de merda.

*************************************



LIGAÇÃO CONFIDENCIAL

Triiiimm...
- Alô.
- Bom dia, seu merda – (é uma voz fanhosa e rouca, visivelmente falsa).
- Quem tá falando aí?
- A Febre do Rato.
- Fôda-se.
- Olha que eu faço uma magia negra fuderosa pra você.
- Dane-se.
- Vou botar pra fudê em você, sêo porra.
- Lasque-se.
- Chega de frescura. Vamo direto ao que interessa: fui contratado pra matá-lo. E você sabe quem me paga.
- Se me matar, é um favor que me faz.
- Pare de falar mal do meu chefe. Você sabe quem é ele.
- Diga a esse cabra safado, a esse vampiro iscrôto, esse corrupto de merda, que ele faça logo o que tem pra fazer.
- Sua vida não vale um vintém.
- E qual é a vida que vale um vintém nesse lugar fudido?
- Você não tem jeito. Ou pára de criticar meu patrão ou eu vou mesmo levar a morte pra você.
- Traga logo esse alívio pra mim, que eu tou a fim de morrer.
- Seu filho da puta, você vai morrer MESMO.
- Vai te fudê, alma sebosa, carniça, côrno do caralho, chupa-cabra, lubisome. Teu chefe tá cumendo tua mulé, fila da puta.
- Tás morto. És um defunto.
- Fôda-se. Vá tumá no cu. – (bateu o telefone)

********************************************



DESTRAMBELHOS EM OLINDA

(Quatro Cantos. Três horas da manhã. Domingo de carnaval. 1983.)

Eu estou “desmaiado” numa calçada e acordo em frente á uma galeria de artes (não lembro qual), só de cuecas, com uma ressaca insuportável (numa ressaca dessas, é melhor pedir ao “pai” pra morrer; numa hora desssas, a morte é mesmo um alívio). Certamente aconteceram efeitos colaterais da mistura de cerveja barata, vodka e pau-do-índio (eu estava “enchendo a cara” com vodka russa no barzinho dos militantes do PCB, antes de sair, já meio tungado).

Após “acordar”, fui me levantando devagar, próximo à entrada da galeria, mas antes deixo uma enorme poça de vômito na calçada. Pierrôs, bebuns e hetaíras olham-me com desprezo (AQUELES olhos cheios de ódio). Saio cambaleando na direção da Praça do Carmo (olindense) à procura de um posto policial. A zombaria e a mangação tornam-se indescritíveis (e eu continuo desejando a morte). Mas tem alguns foliões que pensam que a minha cueca é uma fantasia carnavalesca, exótica, originalíssima. Fôdam-se! (penso). E continuo descendo a ladeira, aos baques. Mi escoro num muro, reequilibrando-me. Uma tontura e uma náusea “cósmicas” tronchíssimas ainda me atormentam. E a vontade de vomitar volta mais uma vez. Graças ao “pai” não vomito. E consigo chegar no posto policial, mas não sem antes levar uns tapas na cara de um “galêgo feiôso” que tentou roubar-me a cueca mas não conseguiu.

Explico ao soldado de plantão o que aconteceu, ele me pede paciência, com uma cara de sono, indiferente, bocejando, e diz que a fila já tem umas quinze pessoas (mas antes olhou com desconfiança para as três tatuagens que eu tinha no corpo: só faltou me pedir pra cuspir no chão). Fui pro fim da fila tranquilamente. E esperei, pacientemente, a minha vez. Quando ele me atendeu, ouviu minha história sempre em silêncio, sem me olhar nos olhos (olhava de vez em quando para as tatuagens, frio, indiferente, pachorrento). Terminou de preencher o Boletim de Ocorrência e disse:

- Todos os dias de carnaval nós atendemos uns mil e quinhentos casos iguais ao teu. Portanto, pega essa cópia do boletim e chama um táxi o mais rápido possível pra te levar em casa.

- Mas eu estou sem dinheiro nenhum. Mande um camburão me levar em casa. – eu respondi.

- Gracinha. Tás brincando, não é? – ele disse, com uma cara feia.

- Que história é essa? – eu respondi.

- Tás brincando sim! E vai timbora logo, doido, antes que eu perca a paciência contigo. – ele disse, já com uma voz de resmungo e ódio.

Saí logo dali, e conversei com um taxista, que concordou em me levar, meio desconfiado. Eu sabia que aquele “bê-ó” não ia dar em nada. Mas não rasguei, porque precisava dele pra tirar novos documentos, que não seriam gratuitos, obviamente. E pra completar, o motorista também começou a ficar cismado com as minhas tatuagens. Olhava-as com um ar de reprovação e desconfiança. Perdi a paciência e disse pra ele:

- Tá pensando que eu sou bandido, sêu pôrra? Chame a puliça! – ele era magrinho e baixinho: não teria muita chance comigo: e mesmo que estivesse armado, eu tomava a arma dele.

- Relaxa, doido. – ele disse. – Eu vou te levar em casa, numa boa. Fica frio. - senti firmeza, e relaxei.

Quando chegamos na minha casa, e que a vizinhança me viu naquele estado, fez uma mangação maior do que a dos pierrôs de Olinda (eu morava num cortiço em Apipucos: foi uma passagem rápida na minha vida). A vontade que eu tinha, naquela hora, era de espancar todo mundo, mas entrei, peguei um cheque, preenchi e passei pru motorista, que aceitou sem dizer nada, e foi simbora, ainda meio cismado (foram trinta e cinco reais pela corrida). O carnaval olindense não é para fracos, eu sabia. E por isso sempre saía, apenas, com algum dinheiro e a carteira de identidade (somente): por uma cópia dela eu paguei quarenta reais.

Fôdam-se!

******



O CEGUINHO DE JERICÓ
(BC. 1972. 31 de dezembro. Cinco horas da tarde.)


Minha vó paterna era o braço direito da igreja católica. Ela, por si, sozinha, decidia muita coisa naquela seara carismática ancestral (“deus” me perdoe os terríveis conflitos internos que suportei dentro de mim, na mocidade, por causa dela: acho que o motivo era, em mim, o pólo “negativo” da anima forçando cegamente uma “guerra civil", a partir das profundas do meu inconsciente). E ainda sou grato ao “pai”, por não ter somatizado essa guerra, ou enveredado por algum surto inaceitável.

Uma das principais decisões que pesava sobre os ombros fortes dessa minha avó era a escolha dos personagens para a Procissão do Senhor Morto. Essas personas eram disputadas pelas crianças “a ferro e fogo”. O personagem mais disputado era o do cego-de-Jericó, pois este, apesar de sair pelas ruas revirando os olhos, fingindo cegueira, também saía com uma cuia de madeira nas mãos, e no final da procissão aquela cuiazinha ficava cheia de confeitos e moedas (pratinhas). Uma prima queria ser Madalena, mas minha vó não deixou. Essa prima passou dois dias chorando, e não quis mais sair naquela procissão sob hipótese alguma (emburrou total). Minha avó deu-lhe uma surra com uns tamancos de madeira muito populares naquela época. Quanto a mim, fui obrigado a aceitar o papel de um soldado romano que jogou dominó após a crucificação, e que já tinha martelado um prego grande no tornozelo do “Yêshua”.

Então lá estou eu, em plena procissão, cansado e suado (era verão), descendo e subindo as ladeiras da Terra de Capacaça, com uma farda de soldado romano, um martelo e um escôpo de cartolina nas mãos, e um rancor fudido dentro de mim (à Moloch ou Javé, tanto faz), e prometendo me vingar do ceguinho na hora mais apropriada (o cara era um sujeitinho lá da minha rua de quem eu sempre tive uma certa inveja quando criança: o carinha fazia sucesso com as mininas, enquanto elas me evitavam: até hoje não consigo entender o porquê). Pensei: “Como é que minha vó escolhe um merdinha desses? Eu sou o seu neto mais inteligente, e o mais desapegado. Essa escolha eu não engulo.” E planejei uma vingança terrível.

No final daquele “labafero” carismático e semi-feudal, à tardinha, antes dos sacristãos recolherem as fantasias, eu escolhi o melhor momento e parti pra cima do “ceguinho” com um martelo e um prego grande (ambos de papelão, obviamente). Mas o ceguinho era bom de briga. Atraquei-me com ele. O martelo e o escôpo quebraram-se. A cuia caiu das mãos dele, e os confeitos e as pratinhas espalharam-se na calçada da igreja. Os outros maloqueiros, ao redor, iniciaram um buruçu medonho em meio à disputa pelas “balas” e moedas. Enquanto aquele cu-de-boi horrível continuava na calçada, eu e o ceguinho estraçalhavamo-nos em meio ao campo de batalha generalizado nos arredores da igrejinha (que exalava um enorme cheiro de “sangue”).

Entre outros golpes, o ceguinho acertou-me um chute medonho na boca-do-estômago. Comecei a “ver estrelas” e caí desengonçado na entrada da igreja, meio tonto. O cego safado ainda conseguiu recolher algumas balas e pratas antes dos sacristãos conseguirem encerrar A Terrível Batalha dos Maloqueiros na Terra de Capacaça. E eu fui pra casa, cabisbaixo, envergonhado, cheio de “ronchas” e desmoralizado (um sacristão pregou-me um sermão puritano arretado, e me esculhambou). Quando contei a história pra minha Vó, ela também me deu uma surra de tamancos, pra eu aprender a ser HOMEM, e não apanhar de um marica qualquer. E assim terminou a “terrível batalha dos maloqueiros na terra de capacaça”.

******



O CELULAR CHINÊS

(Recife. Dantas Barreto. Junho de 2009.)


Maldita a hora em que decidi comprar um celular chinês; porque foi mesmo por vaidade e ego que eu inventei de comprar essa merdinha high-tech, essa bostinha tecnológica do pior país do mundo. Grave bem: eu não sou um desses alternativozinhos babacas que demonizam unilateralmente a tecnologia, ao invés de transcendê-la e administrá-la. Mas me deu mesmo uma raiva fudida, abissal, movediça, contra a globalização predatória e as ditaduras do tipo maoísta ou assemelhadas (o “novo” capitalismo ditatorial, seja na forma de fascismo vermelho ou no formato inquestionável dos superdoutores de Harvad ou dos velhos cowboys à Ronald Reagan com “novas” roupagens). Me deu mesmo um ódio cármico, profundo, desmiolado. Daqueles bem grandes, que provocam surtos horrivéis. Numa hora dessas, o cabra perde o controle emocional e faz umas besteiras horrorosas.

E o meu ódio aumentou ainda mais quando eu comprei um net-book, e só um tempo depois descobri que o soft do windows era pirata. “Pirataria tupiniquim ou chinesa?” – pensei. “Tanto faz. Dá no mesmo.” – pensei de novo. E os comandos do celular eram todos em inglês, e ninguém no Recife sabia lidar com esses malditos comandos. Somente um chinês de uma loja lá da Dantas Barreto é que sabia. Toda vez que eu precisava tirar alguma dúvida com ele, o cabra safado dizia: “Eu tirar dúvida por dez reais, né?”. Eu pagava, com uma raiva arretada, e ele me ensinava sorrindo, com aquela cara de quenga véia, de mongolóide da PQP. Mas a fulerage não parou aí. Pouco tempo depois, a antenazinha do celular quebrou-se, e não havia um lugar em Pernambuco que tivesse outra igual àquela. Nem mesmo o chinês tinha. Coisas da burocracia chinesa ou tupiniquim, tanto faz. Dá no mesmo.

Mas o pior de tudo foi mesmo, ente outras “putarias”, quando o modem começou a falhar. Só que, apesar de falhar, quando estava ligado, ele registrava o tempo de uso, e a conta no fim do mês era sempre enorme. Cego de ódio, comecei a pensar em matar o chinês da Dantas Barreto. Mas a verdade era que eu não estava raciocinando direito. E botava toda a culpa no coitado do chinês. Na minha cabecinha cheia de rancor, ele parecia membro de algum grupo mafioso, ocidental ou oriental. Tanto fazia. E sempre que eu aparecia na Dantas Barreto para tirar dúvidas com ele, e pagar dez reais (?), eu ficava pensando mil besteiras, inclusive puxar minha peixeira e dá-lhe umas três ou quatro cutucadas no umbigo e nos rins. Mas algum setor mais lúcido do meu inconsciente sempre “intervia”, e eu nunca puxava aquela peixeira di doze pulegadas. Ainda bem. Mas aí eu começava a imaginar alguma “magia negra” pra cima dele, alguma paranormalidade fuderosa que eu não tenho, e pensava mil esculhambações que nunca tinha coragem de dizer-lhe. (Ainda bem que ele não é telepata). Vejam alguns exemplos das esculhambações que eu pensava: Fí da Peste. Fila da Puta. Misquinho. Miserave. Fí di Rapariga. Fí da Duença du Rato. Mafioso du carái. Se ele pensa que eu tenho medo de qualquer máfia, tá muito enganado. Eu tenho sangue paranambuc. Sangue quente. Rubro vêio.

Porém o problema, obviamente, não era o coitado do chinês, mas toda a bandidagem internacional, e brasileira, ou ianque, que controlava o comércio da alta tecnologia e seus altos lucros, com o seu cinismo capitalista predatório, vermelho, branco ou de qualquer cor. Decidi vender o celular e o note-book, pois outros “defeitos” começavam a aparecer: desconfigurações, falhas nos softs de texto, desconexões momentâneas inexplicáveis, clicks que nunca funcionavam, ou faziam o contrário do que eu pedia, etc, etc. Foi quando o meu ódio começou a se transferir para os funcionários das lojas de eletrodomésticos, e eu poderia derrepente botar uma bomba em algumas dessas lojas, mas aí eu já tava mentalmente desarmado, e resolvi fazer um recuo tático e dar um tempo. Sábia decisão, porque as coisas estavam começando a ficar quentes demais.

Assim também já é demais também, como dizem lá no meu velho sertão.

Saí de cena na hora certa.
























Nenhum comentário:

Postar um comentário